Crónicas de uma máquina de café

A disposição é sempre a mesma – nenhuma.
Não caísse o ponteiro dos segundos na inércia do tempo e o momento era sempre o mesmo. Depois de premido o rewind, está a sair outro café!
Amontoam-se ao balcão para consumar o hábito e de lá soltam um pedido, outras vezes uma ordem:
- Um café.
- É um café quase cheio, sff.
- Uma italiana.
- Olhe, para mim um café pingado.
- Um com cheirinho.
- Um curto, não quero nenhuma “banheira”!
- Eu quero um garoto, sff.
A entoação varia. A hora do dia e os dias são um factor. Outro, são as pessoas. Mas cedo tal diferença se perde e sempre com a mesma vontade enfrento a máquina, praguejando. E dou-lhe uso.
Desencaixo o filtro e segue-se uma cadeia de movimentos automáticos. Torno-me um apêndice maquinal da coisa.
Com uma pancada seca, engrenada de raiva, limpo o filtro. Vou praguejando baixinho, para que não me oiçam. Ao moinho do café vou buscar mais uma ou duas doses. Recomeça a moer automaticamente, o seu barulho abafa todo este meu sentimento que não contenho… Continuo a praguejar.
Os pedidos sucedem-se. Tento reter os que posso, mas nem olho para trás. Não dou importância ao que me pedem, apenas oiço e obedeço maquinalmente e por sucessão ao que apanho do ar.
Com o filtro já incorporado, ligo a máquina e rapidamente coloco lá uma chávena ou duas.
Sirvo os cafés.
A seguir, é inevitável o pedido de um copo de água para companhia.
Pagam e vão.
Deixam a sujidade na chávena (ás vezes nódoas de batôn que a máquina de lavar não limpa), o saco de açúcar desfeito, banhado em café e colado ao pires… e um copo de água.
(Mas porquê a merda de um copo de água se não a bebem? Porquê se nem lá molham os beiços?)
Vejo-me sozinho, irritado. Tenho uma ou algumas chávenas para pôr na máquina. Que remédio senão praguejar…
Entretanto entra alguém notoriamente bem disposto e sem reservas deseja-me um bom dia de peito cheio e bem audível. Aproxima-se do balcão e eu, bruxo, pergunto:
- Um café?
- Isso mesmo! Mas …
- Curto? cheio? Qual será desta vez a merda do pedido? – Penso eu…
- … Quero um café à Benfica.
- À Benfica!? Assim não conheço. Como é que é?
- É fraquinho, fraquinho.
Pronto. E ganhei o dia. Sai a gargalhada que se esvai á medida que encaro a realidade novamente.
Maquinalmente o café é servido.
A monotonia repete-se.

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